ABORTAMENTO E TAXAS MODERADORAS



Anselmo Borges
padre e professor de Filosofia

Conta Plínio que um sapateiro, depois de ter criticado uma sandália num dos quadros de Apeles, pensando com isso ter competência para criticar tudo o resto, ouviu do pintor a advertência: Ne, sutor, ultra crepidam: não vás, sapateiro, além da chinela.

Aí está um aviso inteligente, que é preciso escutar sempre. Procuro ter essa precaução.

Embora tenha estudado algo de Filosofia Social e Política, que sei eu de política, com que competência? Ficou-me apenas aquele saber comum de que a política é a arte complexíssima do possível, pois tem a ver com o poder - a dificuldade maior dos homens e mulheres é gerir o ter, o prazer e sobretudo o poder -, na tentação constante de se resvalar do bem comum para os negócios. Qual é exactamente a relação entre ética e política, sobretudo quando, numa sociedade-espectáculo, a própria crítica se dissolve ao ser ela mesma restituída em espectáculo? Depois, controla-se a opinião pública, entretendo-a com questões menores e até ridículas - para que se não pense nos grandes problemas.

Apesar de tudo, há pressentimentos, inclusivamente em relação a questões que vêm bastante de trás. Por exemplo, aquele saber difuso de que o País terá de sofrer ainda por muito tempo o erro da abertura apressada de universidades e institutos privados - não era preciso ganhar eleições? Há aquela convicção íntima de que se poderia ser muito mais eficaz no combate à corrupção e de que, por exemplo, os estudos sobre a localização do novo aeroporto de Lisboa são inúteis, pois a decisão já estará tomada...

Começa até a instalar-se algum medo. Como escreveu António Barreto, há "a tentativa visível e crescente de o Governo tomar conta, orientar e vigiar. Quer saber tudo sobre todos. Quer controlar." Já não pode haver um desabafo, parece estimular-se a delação, pretende-se um ficheiro dos funcionários públicos onde constem inclusivamente pormenores da vida privada dos filhos, intenta-se um processo contra o bloguista que levantou dúvidas quanto à carreira académica de um político...

Tenho, por princípio, os políticos em boa consideração e procuro transmitir esse valor, pois acho nobre a actividade política referida ao governo da "coisa pública" por mor do bem comum. Mas vejo os jovens cada vez mais desinteressados pela política e ouço as pessoas com aquela queixa de que afinal "os políticos são todos iguais". Acredita-se em quem? Estará a democracia em perigo, sobretudo por causa da subordinação da política ao poder económico-financeiro, de tal modo que "estar lá um partido ou outro é exactamente a mesma coisa"?

Será decente o desfasamento entre as promessas dos partidos e o seu cumprimento?

Apresento o caso concreto da despenalização da interrupção voluntária da gravidez ou, melhor, do abortamento. Houve um referendo, com os resultados conhecidos, apontando para uma lei moderada. Na campanha e até na noite da votação, apresentou-se como modelar a lei alemã.

Em ordem a uma decisão - e isso é tanto mais verdade quanto mais grave -, é de bom senso ter o máximo de informação possível. Ora, foi publicada recentemente em Diário da República a portaria que regulamenta a nova lei, e, quando se lê, pergunta-se o que leva o Estado, que deve proteger a vida, a ter receio de dar directamente mais informação à mulher que quer abortar. Porquê tanto receio no aconselhamento? Porque é que o esclarecimento sobre os apoios do Estado à maternidade e nomeadamente a possibilidade de adopção é remetido para folhetos?

Mas o que é intolerável mesmo é a isenção de taxas moderadoras para as mulheres que decidem abortar. Não é legítima a equiparação às grávidas e futuras mães, e é uma injustiça social, quando se pensa nos doentes que têm de pagá-las, sendo os mais pobres a pagar cada vez mais pelos serviços de saúde. Porque não há apoios nos problemas da infertilidade?

Afinal - e isto é o mais grave -, muita gente andou enganada: tinha sido dito que o referendo tinha como objectivo a despenalização, quando realmente a intenção parece ser liberalizar.|
Última alteração: segunda, 10 de agosto de 2020 às 20:30